O direito de crianças e adolescentes
A Constituição Federal de 1988 assegura direitos a crianças e adolescentes conforme o Art. 227 “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Além disso, direciona à criação de políticas públicas para a máxima proteção e atendimento diferenciado para respaldar direitos relativos à infância e juventude, visto ser de extrema importância essas fases para o desenvolvimento do indivíduo (BRASIL, 1988).
Outro documento importante no que tange ao direito das crianças, é o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990) que apresenta normas específicas para a proteção dos direitos das crianças e adolescentes abrangendo e detalhando o que foi previsto no Art. 227 da constituição federal e direciona o atendimento socioeducativo para os conflitos com a lei. Dentre os direitos gerais já citados a todos sem distinção, o ECA assegura à criança deficiente, sendo dever do Estado, atendimento educacional especializado preferencialmente na rede regular de ensino, conforme o Art. 54. E para que esse atendimento ocorra de forma satisfatória, é necessário que se estabeleçam políticas públicas que direcionam esse atendimento de acordo com o currículo e as necessidades individualizadas (BRASIL, 1990).
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 (BRASIL, 1996) é outro marco de conquistas para a educação inclusiva e equitativa quando se trata de educação básica visto que, conforme o Art. 3º, estabelece diversos princípios para o acesso e permanência na escola de todos, sem distinção qualquer. Em seu Art 4º, inciso III, traz a garantia de “atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente na rede regular de ensino”.
E no Art. 59, apresenta especificidades a serem atendidas de forma a garantir o direito desse público: Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação: I — currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades; II — terminalidade específica para aqueles que não puderem atingir o nível exigido para a conclusão do ensino fundamental, em virtude de suas deficiências, e aceleração para concluir em menor tempo o programa escolar para os superdotados; III — professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns; IV — educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não revelarem capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora (BRASIL, 1996, p. 42).
A previsão legal e escola
Tal previsão legal gera a necessidade, por parte da escola e dos profissionais envolvidos, de compreensão da deficiência e suas necessidades, inclusive a adaptação curricular e seus objetivos para a elaboração de práticas que asseguram a qualidade e atendimento especializado visando a inclusão, a autonomia, o desenvolvimento motor e intelectual. Nesse contexto, é necessário que os profissionais envolvidos no processo de inclusão tenham ciência de que precisam realizar uma proposta metodológica que se encaixe na necessidade da turma e na individualidade dos estudantes, sendo eles deficientes ou não, além de atendimento adaptado para o estudante com deficiência. Para isso, precisa-se valer de metodologias diversificadas que potencializam o aprendizado e atendem as necessidades dos estudantes por meio de adaptações curriculares que podem ser de grande porte que estão na esfera política e estrutural ou as de pequeno porte que ocorrem em sala de aula e estão ao alcance do professor.
As Adaptações Curriculares de Pequeno Porte (Adaptações Não Significativas) são modificações promovidas no currículo, pelo professor, de forma a permitir e promover a participação produtiva dos alunos que apresentam necessidades especiais no processo de ensino e aprendizagem, na escola regular, juntamente com seus parceiros coetâneos. São denominadas de Pequeno Porte (Não Significativas) porque sua implementação encontra-se no âmbito de responsabilidade e de ação exclusivos do professor, não exigindo autorização, nem dependendo de ação de qualquer outra instância superior, nas áreas política, administrativa, e/ou técnica. (BRASIL, MEC, 2000, p. 8).
Vale ressaltar que a adaptação de currículo não significa diminuir conteúdo ou deixar de oferecer desafios para o estudante, mas trata-se de oferecer possibilidades diversificadas para as necessidades a fim de que todos tenham acesso ao currículo e possam se desenvolver de acordo com a sua necessidade e aprendizagem, tornando o ambiente plural e inclusivo, em que os pares podem se ajudar e mutuamente desenvolver habilidades, tornando a aprendizagem significativa (LIMA e MARTINS, 2022). Essas adaptações podem ser realizadas no currículo escolar, nos objetivos de aprendizagem, no conteúdo, no método aplicado, no processo de avaliação e tendem a ser alterados com base no crescimento do estudante.
Papel da escola e do professor no atendimento
Tendo em vista a legislação já apresentada e as características das crianças neurodivergentes, a escola desempenha um papel primordial no desenvolvimento da criança, uma vez que o ambiente escolar traz aprendizagens que ultrapassam conteúdos e objetivos da Lei. Ela possibilita o convívio social entre pares, as regras do ambiente, o desenvolvimento de habilidades por observação do semelhante, reforçando a autonomia e independência. Pensando no desenvolvimento pedagógico cognitivo, a escola deve considerar os conhecimentos prévios já adquiridos e a elaboração de uma prática direcionada para novas aprendizagens. (AMARAL e NISTA-PICCOLO, 2023)
A prática pedagógica para o atendimento das crianças neurodivergentes deve levar em conta a necessidade de adaptação do currículo, atividades com materiais concretos e visuais, divisão dos conteúdos com repetição, utilização de comandos simples e diretos com exemplificação concreta, devido à lentidão intelectual que pode estar presente. Nesse sentido, a escola precisa estar preparada para trabalhar de forma coesa com a família e a prática do dia a dia com o professor em sala de aula. (NEUROSABER, 2023)
Primeiramente, a escola precisa ter ciência do seu papel na acessibilidade de uma educação de qualidade e significativa para as crianças, sem distinção. Além disso, a escola deve fornecer um ambiente acolhedor, inclusivo e ter uma escuta ativa para as necessidades dos estudantes. Quando destacamos esse tipo de ambiente, considera-se um trabalho a muitas mãos e conhecimento principalmente quando se fala de inclusão de crianças com necessidades educativas especiais, é necessário um apoio especializado ao professor para juntos elaborarem um projeto de atendimento, o apoio dos pais, profissionais de apoio externo com as terapias.
No que tange ao pedagógico, é necessário realizar uma anamnese para conhecer o estudante, verificar suas necessidades, suas aprendizagens prévias para assim definir em que nível será necessário as adaptações, se no currículo, nos objetivos de aprendizagem, no conteúdo, no método aplicado, no processo de avaliação ou em todo o processo. Além disso, a afetividade se mostra um recurso importante para o processo de ensino uma vez que gera um laço de confiança entre o estudante e o professor.
Gonçalves e Silva (2023) trouxeram a perspectiva walloniana relacionada à influência da afetividade no processo de ensino aprendizagem, no que diz respeito ao trato com o estudante, a relação social estabelecida, as propostas elaboradas, formas de corrigir e avaliar. Estes aspectos se mostram de grande importância na necessidade de conhecer o público, a disponibilidade de atenção às demandas, o grau de voz para se dirigir às crianças entre outros aspectos que geram maiores possibilidades de trabalho e por consequência, maiores resultados no processo de ensino e aprendizagem.
Educar para a diversidade: o acolhimento de pessoas neurodivergentes
Muitas vezes, quando uma criança neurodivergente pratica algo que é considerado um problema, essa ação assume uma repercussão muito maior do que deveria. Diferentemente do que ocorre quando o mesmo ato é praticado por crianças típicas, pequenos conflitos ou indisciplinas são tomados numa gravidade desproporcional, os pais são convocados e se instaura um clima de terror.
O maior problema quando a escola assume tal postura está no fato de que as crianças percebem isso. As neurotípicas passam logo a legitimar esse comportamento e assumir uma postura persecutória e de vigilância sobre as crianças neurodivergentes que, por seu turno, percebem que são tratadas de maneira distinta e, portanto, sentem-se injustiçadas, o que aguça comportamentos inadequados ou mesmo provoca o isolamento social em resposta ao que julgam ser um tratamento inadequado. Nos dois casos, há evidentes prejuízos para o grupo como um todo.
Crianças e adolescentes neurodivergentes são mais propícios a sofrerem bullying, especialmente quando o grupo de alunos percebem que a escola não lhes dá voz, espaço ou credibilidade. Da mesma forma, esse grupo neurodivergente tende a praticar o bullying como forma de se defender em um espaço que lhe parece hostil. Esses comportamentos poderiam ser evitados se os adultos (gestores, professores e demais funcionários) da escola agissem de maneira adequada ao solucionar os problemas que surgirem. Mais uma vez aqui, salientamos a necessidade de formação continuada dos profissionais da educação.
Essa constatação, no entanto, não traz o peso de se responsabilizar o professor por todo esse processo educativo. Sabemos da complexidade desse fazer pedagógico em um contexto de tanta diversidade. Lembramos aqui de Vygotski que apresentava como pressupostos para a aprendizagem a identificação do conhecimento a ser aprendido (o que aprender); a escolha de estratégias para processar esse conhecimento (como aprender) e o envolvimento com o processo de aprendizagem (o que se quer aprender). Precisamos iniciar essa formação por nós, pais e professores, de maneira a podermos compreender como se aprende, inclusive para a convivência social pacífica e solidária.
Nesse sentido, reconhecemos a importância de se considerar o sujeito cognoscente como sujeito de sentidos, de afetividades, de subjetividades. E é por meio da interação com o outro (seja o professor ou os colegas) e com o ambiente à nossa volta que desenvolvemos as competências de aprender a aprender; de aprender a ser; de aprender a fazer e de aprender a conviver. Ou seja, a aprendizagem na escola não passa apenas por formação acadêmica, mas também por formação socioemocional de cada um de nós, pais, professores e alunos. Por isso, muitos educadores hoje propõem a adoção do Desenho Universal de Aprendizagem.
Esse desenho se pauta na compreensão de que somos todos neurodiversos e aprendemos de maneiras diferentes. Não se serve apenas para atender a crianças e adolescentes neurodivergentes, mas a todos que estão na escola, posto que somos únicos, inclusive em nossa forma de aprender. Essa proposta trabalha a partir de três premissas para a atuação do professor: a utilização de diferentes materiais didáticos (incluindo os digitais); a diversidade de estratégias pedagógicas e a contextualização que possibilita estabelecer inter-relações entre o conteúdo e a vida real do aluno.
A formação integral da pessoa na escola pressupõe que estejamos abertos a enxergar as diferenças que cada um e cada uma traz consigo. Diferenças são peculiaridades, especificidades e não devem ser vistas como um problema a priori. Dessa maneira, precisamos compreender que a educação para a inclusão deve promover um trabalho conjunto entre família e escola com a participação efetiva daqueles que mais conhecem as crianças e que podem trazer contribuições muito positivas para todo o processo, tanto ao indicar qual a melhor forma de se lidar com a criança, como reverberando em casa o trabalho feito na escola.