A distribuição das comidas e alimentos representando diferentes povos
Alimentos e comidas são diversas e cercadas de histórias, sejam de origem religiosa, histórias por motivação política, ou mesmo lendas que vão surgindo em determinadas regiões. Podemos relembrar que a primeira grande revolução do homem foi a agricultura. Foi a partir dela que os povos puderam se concentrar em determinadas regiões (inicialmente ao longo do chamado Vale Fértil) e puderam se dedicar a outras atividades que não fossem coletar e caçar alimentos.
Isso influenciou no desenvolvimento das comunidades política, social e até mesmo, religiosamente. A distribuição das comidas e alimentos representando diferentes povos (diferentes também daqueles na localidade original) teve como catalisador involuntário as Grandes Navegações, que promoveram um intercâmbio cultural, que permitiu, por exemplo, que a batata originária das Américas tenha virado símbolo do Reino Unido e seja conhecida hoje como batata inglesa. Da mesma forma, não conseguimos imaginar a cozinha italiana sem os tomates, também americanos.
Histórias, mitos e lendas que fazem que cada alimento tenha uma figura no subconsciente coletivo universal
A partir disso muitos mitos, lendas e histórias se criaram em torno da alimentação.
Uma história corrente nas redes sociais, avaliada por muitos como uma lenda, é a de que a cenoura laranja teria sido desenvolvida pelos holandeses, por uma questão política no século XVI.
As cenouras (naturais do Afeganistão), que até então eram brancas, amarelas e roxas teriam passado por diferentes cruzamentos até atingir a cor alaranjada que conhecemos hoje, e isso teria sido motivado por uma suposta homenagem à família real holandesa cujo rei era Guilherme de Orange, outros afirmam que a cor laranja foi uma mutação introduzida pelos islâmicos e popularizada pelos holandeses. Independentemente da motivação para o cultivo da cenoura laranja, a manutenção desse cultivo se deu por questões que perpassam escolhas políticas, agrícolas e alimentares. A Holanda já produzia cenouras e tinha meios de aumentar a produção do tubérculo alaranjado, que respondeu muito bem ao clima holandês, aumentando o lucro e a produtividade, além disso, tinha a “cor da família real” e isso foi, de fato, utilizado como propaganda política.
No Brasil, a lenda mais conhecida (e propagada) é de que a feijoada seria comida de negros escravizados, as carnes que seriam consideradas “menos nobres” como orelhas, pés, rabo e outros seriam descartados e juntos ao feijão-preto seriam cozidos e distribuídos para as pessoas escravizadas. Entretanto, os portugueses já consumiam essas carnes e não as consideravam “menos nobres”, além disso, a alimentação no Brasil colonial era precária, mesmo entre os mais ricos, não se admitindo desperdícios de proteínas. Sim, a antropologia e história já desmentiram essa lenda, a mesma ganhou força com a cruzada modernista do Governo Vargas, que buscou traçar um rosto para o Brasil, e esse país tinha, como símbolo culinário, a feijoada prato que unia os três povos que constituíam o Brasil-Nação com o arroz dos portugueses, a feijoada dos negros escravizados e a farinha dos povos indígenas.
Quem come, saboreia política!
Ambas as histórias trazidas aqui tem um fator em comum, o desejo político de se criar ou se apropriar de uma narrativa, uma história e um símbolo. É quase um clichê dizer que comer é um ato político, mas restringir o “comer” a somente o ato de se nutrir, ignorando como o alimento vira a comida no prato do comensal, são esvaziar os sentidos simbólicos e econômicos que passam por essa escolha.
No século XVI, um aumento de preços da cevada e do malte causou um furor na Inglaterra e gerou riscos de uma invasão no parlamento, eles tiveram que recuar o aumento para conter a revolta popular. Há poucas semanas, o governo do Distrito Federal precisou se manifestar na mídia para explicar o porquê só tinha carne de porco para comer em alguns colégios da rede pública.
Não é um fim em si a simples disponibilidade da comida (no caso, a disponibilidade da carne de porco para a merenda), são necessários a variedade, o equilíbrio nutricional e o valor imagético daquela refeição. Como diz Farb e Armelagos “todos os animais se nutrem, mas somente os seres humanos comem.”
As dimensões culturais e o combate à fome.
As histórias que ilustram essa discussão trazem esse peso em si, não são criadas, ou não são perpetuadas, em torno de comidas consideradas secundárias: sempre tratam de alimentos ou comidas com grande importância social. Além das já citadas temos a mandioca, o cacau, e o arroz em diferentes culturas.
A polarização política do país também se vale de alimentos icônicos para marcar suas diferenças, como “os coxinhas” em 2013, ou a “mortadela” ou, em caso mais recente, “o churrasco com picanha”. Um país que combate, novamente, a fome precisa que boas políticas públicas de alimentação sejam implementadas, e, para isso, é necessário levar em conta esses aspectos, tanto que, na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (2006), consta que a adoção de políticas públicas deve levar em conta dimensões ambientais, culturais, econômicas, regionais e sociais. Ou seja, não só o alimento deve estar disponível na região como deve estar inserido na cultura local, não adiantaria, em um país do tamanho do Brasil, distribuir flocão de milho em todos os territórios sendo que o cuscuz não é consumido em todos os estados, é preciso alinhar os gostos e costumes com os alimentos disponibilizados.
As políticas públicas de abastecimento e segurança alimentar para erradicação da fome nos Brasis!
Ainda que tenhamos uma melhora nos últimos anos, os estudos técnicos que têm a comida como tema ainda são relegados a segundo plano na academia — vistos como assunto pitoresco ou puramente folclórico. Indo para outro pólo, temos estudos que se dedicam às questões fisiológicas, biológicas e nutricionais, ignorando outras dimensões do comer, ignorando que a ingestão de nutrientes é diferente de comer comida. Podemos estudar essas histórias, falaciosas ou não, místicas ou não, a partir, somente, do inusitado, mas isso é perder uma boa possibilidade de entender como e por quê essas histórias ganharam vida naquela população, naquele tempo e naquele grupo.
Entender essas medidas pode contribuir e muito para formulação de políticas públicas, no ponto em que se entende a alimentação a partir das perguntas: “quem come, o quê, como, com quem, quando, o que, em qual circunstância”. Ninguém come carboidratos, proteínas e vitaminas, e, do ponto de vista do senso comum, pode não fazer muita diferença a origem da feijoada ou das cenouras alaranjadas, mas, com certeza, os símbolos que essas histórias trazem, e as escolhas locais sobre o que é ou não comida precisam sempre ser observadas para o entendimento sócio-político e econômico.