Ceilândia se formou com os trabalhadores braçais que participaram da construção da capital e que optaram por não retornar à dura vida no Nordeste
Ceilândia, uma cidade nascida 10 anos após a construção de Brasília, é um símbolo de esperança e perseverança. Os trabalhadores, principalmente vindos do Nordeste, que ajudaram a construir a cidade planejada e admirada pelos brasileiros e pelo mundo, escolheram permanecer aqui em busca de uma vida melhor. Brasília, uma obra-prima de arquitetura, urbanismo e planejamento moderno, foi concebida para abrigar até 500 mil habitantes e servir como centro político do governo federal. Em contraste, Ceilândia se formou com os trabalhadores braçais que participaram da construção da capital e que optaram por não retornar à dura vida no Nordeste.
Eu nasci em Ceilândia, filho desses pioneiros que depositaram sua esperança em uma vida melhor. A história da cidade é complexa, repleta de diferentes perspectivas, desencontros, mitos, erros e meias-verdades. Ela é um reflexo das profundas contradições do nosso país, que precisa encontrar uma forma de resolver suas questões para se tornar uma só nação. Para isso, não podemos ter cidades privilegiadas com boas políticas públicas enquanto outras ficam desamparadas, sem ver os impostos revertidos em benfeitorias.
Nossa história começa com os trabalhadores que construíram Brasília e formaram pequenas favelas ao redor da nova capital.
Nossa história começa com os trabalhadores que construíram Brasília e formaram pequenas favelas ao redor da nova capital. Essas favelas logo se tornaram um problema, e o governo militar encontrou uma solução provisória: levar essas pequenas invasões para a Vila do IAPI, que, com o tempo, acumulou uma população de 80 mil pessoas. A solução provisória acabou se tornando um novo problema para o governo.
Na inauguração de Brasília, o governo militar enfrentou a resistência da Cidade Livre, que mais tarde se tornou o Núcleo Bandeirante. O problema agora era ainda maior: uma cidade muito maior que resistia à remoção. Para evitar um desastre como o ocorrido com a Construtora Pacheco Fernandes em 1959, onde operários foram mortos pela Guarda Especial de Brasília, um líder disposto a negociar surgiu em Ceilândia.
Gongon, o grande líder da época, aceitou conversar com o governo para evitar uma tragédia.
Gongon, o grande líder da época, aceitou conversar com o governo para evitar uma tragédia. Após muitas negociações, um acordo foi feito, e a grande mudança das 80 mil pessoas para Ceilândia começou em 1970, com a inauguração da cidade em 1971. A realidade, no entanto, era dura: sem água, luz, saneamento básico ou qualquer infraestrutura. Nossos pais contavam que não tínhamos nada, apenas as madeiras da construção de Brasília usadas para construir nossos barracos, e a água vinha de caminhões-pipa. Amigos da antiga Vila IAPI foram separados, uma estratégia para evitar a organização de movimentos.
Com o passar dos anos, a distância e as diferenças entre Ceilândia e Brasília se consolidaram. Apesar de estarem a apenas 25 km de distância, as duas cidades vivem realidades opostas. Ceilândia, com poucas políticas públicas, e Brasília, uma cidade suntuosa e considerada um dos melhores lugares para se viver no país. Muitos artistas, cantores de rap, poetas como Carlos Drummond de Andrade e pensadores como Cristovam Buarque já falaram sobre essas diferenças.
Brasília, a filha legítima e planejada, e Ceilândia, a cidade bastarda e mal falada
Recentemente, a série “Justiça 2” da Globoplay colocou Ceilândia em evidência, contrastando com o Plano Piloto. Mostrou nossas realidades, nossas felicidades e dores. Brasília, a filha legítima e planejada, e Ceilândia, a cidade bastarda e mal falada, refletem não apenas diferenças geográficas, mas a incapacidade humana de conviver com as diferenças e a política que beneficia uns em detrimento de outros.
A experiência humana é maior do que nossa origem ou o que possuímos. Conviver com diferentes culturas e experiências pode nos tornar melhores. Em Ceilândia, vendemos drogas, mas um estudo da UNB mostrou que o maior consumo de drogas no DF é na Asa Norte. Somos nós que prestamos serviços em diversas funções em Brasília. Apesar do ódio que muitos de nós têm pelos brasileiros de classe média e ricos, precisamos encontrar maneiras de construir pontes e conexões produtivas.
O desafio das cidades que nasceram juntas, uma planejada e outra fruto de invasão, é se entender.
O desafio das cidades que nasceram juntas, uma planejada e outra fruto de invasão, é se entender. Uma eterna desavença entre duas irmãs que, em muitos momentos, se odeiam, mas que não sabem viver sem a outra. Esse entendimento é crucial para todos os filhos dessas duas cidades. Uma convivência pacífica de crescimento e compreensão é essencial para entendermos de onde viemos e para onde vamos, visando a evolução e desenvolvimento das próximas gerações, os descendentes desta grande história.