A transmissão do conhecimento culinário nos tempos atuais
Nas diferentes redes sociais, os conteúdos sobre comida são abundantes, seja no formato de reacts, nos quais as pessoas observam outras pessoas cozinharem e emitem suas reações, seja por vídeos ensinando receitas, de degustações de produtos, com análise sensorial, enfim, um vasto mundo.
Não é raro encontrar esse material com marcações, perguntas aos produtores de conteúdo, seguidores convidando outras pessoas, combinando de fazer ou pedindo para que alguém de suas relações o faça para ela.
Sim, antes eram os cadernos de receitas, o suporte predileto!

A pandemia foi, sem dúvidas, um catalisador nesse processo e não faltaram reportagens que abordaram esse assunto sobre os diferentes pontos de vista, seja analisando o estímulo do ambiente digital ao consumo de ultraprocessados, os hábitos e impactos no consumo, seja criticando a forma como as mudanças corporais são abordadas nas redes sociais. Podemos observar que, mesmo após a pandemia, os conteúdos sobre alimentação seguem em alta.
Entretanto, o que vamos destacar aqui é uma possível migração do local de uso do receptor de diferentes receitas. Se antes eram os cadernos de receitas, o suporte predileto,tanto, com os manuscritos aliando-se das colagens recortadas, hoje temos as pastas em redes sociais.
Se químicos, físicos e Chefs rejeitam as receitas definindo-as como ultrapassadas, considerando-as escritos que ignoram os processos envolvidos no fazer culinário, historiadores, antropólogos e linguistas se deleitam com as possibilidades de estudo a partir das receitas, seus enunciados, os termos utilizados, os utensílios solicitados: todo um vasto material para produzir conhecimento. Mas, e fora da academia? Fora da academia as receitas seguem sendo o desejado Graal do fazer culinário. A popularização das redes sociais trouxe uma proximidade com os grandes Chefs, hoje eles não estão isolados em suas limpas cozinhas de inox, estão ao alcance de uma mensagem. Muitas vezes fazem receitas em suas próprias casas, gravando vídeos e compartilhando dicas, uma rápida passada de olhos em suas postagens, e vemos uma série de comentários “e a receita? Pode passar a receita? Qual é a receita digital?”
Em vários vídeos e lives nos quais chefs se dispõem a cozinhar ou mesmo ensinar de fato um preparo, eles pedem que o foco não seja a receita, que se entenda o processo e que as quantidades sejam informadas posteriormente. Alguns demonstram fortemente seu incômodo com os pedidos de receitas. É uma disputa de fato, de um lado os chefs e seus desamores pelas receitas e do outro o que chamaremos de público de casa, que podem ou não ser os responsáveis pela alimentação cotidiana sua ou de outros, e aqueles chamados, de forma, até meio pejorativa, pelos profissionais da alimentação, como colecionadores de receitas, que juntam várias, mas não executam nenhuma.

Quando se fala de receita, um aspecto a considerar é seu valor sentimental. Profissional ou não, dificilmente alguém deixa de reconhecer a honraria que é receber uma receita de família. A maneira como essa transmissão acontece não é simples – não se pega simplesmente um manuscrito e passa para a outra pessoa ou de mão em mão, até porque, muitas vezes o manuscrito daquela receita de família nem foi feito ainda. A transmissão se dá no processo do ensinar por meio do fazer: a pessoa detentora do saber (geralmente uma mulher) faz e vai destrinchando os “segredos” para o aprendiz, e o aprendiz é colocado para fazer e ter seu produto final “analisado”. O grau máximo a ser atingido é estar igual ao da pessoa que ensinou. Repetição e resultado padrão é o que se busca numa cozinha, seja ela profissional ou não.
Os novos “cadernos de receitas” como esse material está sendo guardado nos tempos atuais.
Se o fim é o mesmo, podemos deixar os escrutínios teóricos para suas respectivas áreas de conhecimento e pensarmos que talvez o formato das redes sociais seja quase que o meio ideal e que mais representa as mudanças nas organizações familiares das últimas décadas. O aumento no tempo de deslocamento, as mudanças no serviço doméstico implica numa transmissão de receitas cada vez menor, além disso, as revistas também caíram em desuso, os programas de TV de receitas tiveram seus tempos reduzidos e compartilhados com atualidades ou estão restritos aos canais pagos. O simples pegar uma receita-texto na internet e reproduzir, pode criar confusões na execução, por isso o formato vídeo+legenda parece ser uma soma adequada e que responde às mudanças apontadas até aqui.

Por mais que o ato de cozinhar a própria comida seja um dos primeiros a ser sacrificado por questões político-sociais e econômicas, ele ainda desperta interesses e mesmo paixões genuínas. Basta olhar os números de alcance desses conteúdos nas redes. De fato, a luta pela soberania alimentar, por uma melhora da saúde da população e de tantos outros fatores debatidos nas políticas públicas passa por acesso à ingredientes de qualidade e também pelo conhecimento de como manejar esses ingredientes, ou seja, como cozinhá-los de fato! E as receitas seguem sendo o pilar mais conhecido para isso.
Assim chegamos junto a você
Como diz Massimo Montanari “o pão é o alimento do homem civilizado” pois ele acontece através da transformação da natureza dos grãos em comida. Estamos atentos aos próximos formatos dos quais as receitas se valerão para continuar sendo compartilhadas, ensinadas e valorizadas, pois, a séculos esse material vem se mostrando inalterável mesmo em meio a tantas mudanças.
Uma resposta
Excelente trabalho sobre o conhecimento da cultura alimentícia do Brasil